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O espaço das pequenas coisas

O espaço das pequenas coisas

28
Out20

Kit de sobrevivência VI - Anónimo

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Na entrevista ao prestigiadíssimo programa “60 minutes”, Donald Trump começa por atacar a jornalista, protestando que o tipo de perguntas que lhe estavam a ser colocadas era muito mais duras do que as da entrevista a Joe Biden.

Em primeiro, a entrevista com Joe Biden ainda não tinha estreado à data. Em segundo, a jornalista limitou-se a confrontar Donald Trump com os números do covid nos Estados Unidos até à data: mais de 225 mil mortes, mais de 8 milhões de casos. A resposta do Presidente: uma economia “melhor do que nunca”, levantar suspeitas sobre os alegados negócios do filho de Biden, a sua excelente política externa, particularmente a sua relação próxima com o ditador Norte-Coreano.

 

Uns dias mais tarde, assisti ao hilariante e desconcertante novo filme de “Borat”, no qual o advogado de Trump é exposto numa cena inacreditável, digna de um filme da máfia. Infelizmente, a cena parece ser bem real. Alguns leitores poderão dizer que Rudy Giuliani foi “apanhado com as calças na mão” (literal e figurativamente), seja como for, revela o clima sexista, perverso, condescendente que paira sob a tutela do atual Presidente dos Estados Unidos. Mais, a eleição de Trump em 2016, legitimou e deu força à cultura do bullying, da ignorância, da desinformação, da polarização, da intolerância.

 

Há alguns anos estive numa escola num projeto e o que observei foi muito diferente do que acontecia quando eu andava na escola. Atualmente, pelo que soube, existe sobretudo o cyberbullying porque para o bullying na escola há tolerância zero. Sempre que, durante o tempo em que estive na escola, havia algum rumor de bullying, o bully era chamado ao gabinete do Diretor da Escola e por lá ficava umas boas horas de castigo. Como vim a descobrir, muitos destes bullies eram eles próprios vítimas de agressão física ou psicológica, na sua casa ou no seu grupo de amigos.

 

Então, o que fazer quando um Presidente é um bully? Nada, porque, como escreveu Pedro Cordeiro, no Expresso, "Seis-três é a conta que Donald fez". Assim, como derradeiro grand finale Trump nomeia Amy Coney Barrett, juíza ultraconservadora, para o cargo vitalício de Juíza do Tribunal Supremo.

Ainda que Trump ganhe as eleições, resta-nos apenas continuar a caminhar. A história avança, não há razão para não ter esperança.

25
Out20

Lá, do outro lado do Atlântico

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Imagem de Patrick Chappatte para The New York Times a 14 de Março de 2017 "Trump meets Merkel"

 

Foi com grande ansiedade e expectativa que esta semana fui acompanhando a preparação, o evento e a pós-análise do debate presidencial norte-americano. Sempre tive interesse pela política (ver crónica "Kit de Sobrevivência III - Marcelo Rebelo de Sousa"), e contrariamente ao movimento da minha geração, sinto-me cada vez mais atraída pelo mundo obscuro da política, do jornalismo, dos negócios. Não sinto apatia, mas sim necessidade de acção, e talvez esta crónica seja o meu pequeno e humilde contributo.

Ao ver uma das minhas séries preferidas “The Office”, parece-me ver retratada a minha realidade, dos meus amigos ou familiares, uma realidade que podia ser “global” por estarmos americanizados na música, nos filmes, nas séries, na linguagem, nos negócios, na cultura. Porém, quando assisti na íntegra ao debate presidencial, senti-me transportada para uma realidade alternativa, como a personagem de Scarlett Johansson no filme “Lost in Translation”.

À medida que a semana foi decorrendo, fui reflectindo nas frases que foram ditas. Talvez a que mais me chocou foi quando, no tema do covid, Trump acusa Biden de querer criar um sistema socialista de saúde e Biden, não contendo a sua raiva, recorda que o que o distingue de todos os outros candidatos democratas (leia-se Bernie Sanders) é que ele não quer acabar com o sistema privatizado de saúde, mas sim criar o “Bidencare”, no qual as empresas seguradoras serão certamente incluídas.

Na Europa (que Trump, mais uma vez parece não perceber que é um continente e não um país), uma afirmação deste teor seria impensável. Na União Europeia, apesar de existirem sistemas de saúde privatizados, os cuidados de saúde não são negados a ninguém.

Em Portugal, em particular, tal seria impensável. Sim, existem tempos de espera desumanos, sim, há de falta material, sim, os profissionais de saúde não são tratados com o respeito que merecem, sim, os doentes são tratados como se fossem invisíveis, mas, apesar de tudo, não são negados cuidados de saúde a quem precisa, independentemente do seu estatuto, seguro, nacionalidade, cor da pele, o que for, tem direito a ser assistido.

Esta ideia de alguém se querer demarcar de cuidados de saúde universais horroriza-me, mas talvez eu não compreenda a cultura do capitalismo desenfreado, o “american dream” e tantos outros clichés.

As eleições norte-americanas podem parecem uma coisa lá do outro lado do Atlântico, mas a verdade é que não nos podemos dar ao luxo de perder o financiamento americano na ONU, não podemos perder o compromisso dos Estados Unidos no Acordo de Paris e, acima de tudo, não podemos ter mais quatro anos de um discurso de ódio, fake news e caos.

21
Out20

Kit de Sobrevivência V - Lao Tsé

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Há umas semanas falei no meu desejo para 2020 (ver crónica "Kit de Sobrevivência II - George Addair"). Na verdade, creio que já estava n’O Caminho por causa da minha amiga Anamor ou Ana, como lhe chamam no sítio onde vive agora.

Conhecemo-nos na faculdade, é impressionante como podemos esquecer tantas coisas, mas lembro-me como se fosse hoje, a nossa primeira conversa. Anamor estava a falar com uma colega nossa sobre uma viagem à Turquia e, não consigo explicar bem porquê, senti um impulso que me levou a intervir e contar que também eu tinha estado na Turquia. Olharam as duas para mim, mas Ana não tinha um olhar reprovador por ter interrompido a conversa, pelo contrário, fez uma pausa, olhou-me nos olhos, esboçou um sorriso e disse: “tu é que podias participar numa viagem que estou a organizar!”.

E pronto, bastaram estas palavras, fui completamente sugada para o mundo da Anamor. Nos três anos que se seguiram, em que estava longe da minha família, dos meus antigos amigos, dos meus valores, todas as minhas crenças foram desafiadas, os meus dias foram preenchidos de atividades, organizações, cruzadas éticas, e sempre planos para o futuro.

Anamor é o mais próximo que alguma vez tive de uma irmã mais velha. Foi a única amiga com quem tive uma discussão abertamente e com quem fiz as pazes abertamente. É a minha amiga que desafia tudo o que penso, até ao mais ínfimo pormenor, todas as minhas relações, todas as minhas crenças até hoje e fá-lo comigo porque o faz com ela própria.

Quando estamos juntas, o tempo desaparece. Agora que é Mãe, tem aprendido muito e eu com ela. Tentamos não repetir os erros dos nossos Pais e, no entanto, iremos, inevitavelmente, cometer os nossos próprios erros. Os filhos dela são como meus filhos e, talvez o sintam, porque sempre que falamos ao telefone querem falar comigo. Os abraços deles são sinceros e apertados, o amor deles é como o amor da minha família – incondicional.

Apesar de estarmos longe, Anamor e eu falamos quase todos os dias. Sinto muita falta das infinitas possibilidades da nossa juventude, mas, de alguma forma sinto que estamos a plantar algo novo: deixamos quem fomos para nos tornarmos quem somos.

18
Out20

Estado de calamidade ou "que desgraça!"

Estado de calamidade.jpeg

 

A minha Avó era uma pessoa peculiar, cheia de contradições e paradoxos. Para começar, era baixinha e magrinha, delicada mas cheia de energia, parecia quase flutuar. Na presença do meu Avô, parecia que ficava ainda mais pequena, já que ele era tão alto e ocupava tanto espaço com a sua voz grave e sonante.

Em 1918 nasceu a minha Avó, numa aldeia no Minho, onde habitariam, na altura, cerca de 900 pessoas. Foi Professora do Ensino Primário até o meu Pai nascer, pois com quatro filhos, tornava-se difícil cuidar de todos.

Quando o meu Avô morreu, teria eu uns onze anos, a minha Avó não fez grande alarido, vestiu-se de preto e branco, o que achei muito digno, e continuou a sua vida. Todos os dias ia a pé até ao mercado e aos Domingos, servindo sempre uma bela chávena de chá darjeeling, perguntava à minha Mãe pelas nossas notas, mas nunca pelas nossas brincadeiras ou interesses. Como disse, a minha Avó era um mundo de contradições.

O que melhor recordo da minha Avó eram as (frequentes) ocasiões em que alguém lhe contava algum evento, que a mim parecia completamente normal, e, inevitavelmente, a minha Avó soltava um suspiro e respondia “que desgraça!”. Independentemente do grau de gravidade ou seriedade do assunto, esta era a reação da minha Avó.

Agora que passaram tantos anos, imagino muitas vezes o medo que a minha Avó devia sentir. O medo da cidade, o medo de estar sozinha, o medo da diversão, da brincadeira, da desordem, o medo do desconhecido.

Entrámos, esta semana, novamente em “estado de calamidade” e, inevitavelmente, pensei “que desgraça!”. Não é “uma desgraça” como quando estávamos em “estado de emergência” e olhava pela janela e não via crianças a brincar, mas é “uma desgraça” porque também eu tenho medo de estar sozinha, que a diversão e a brincadeira não voltem e, sobretudo, tenho medo do desconhecido.

14
Out20

Kit de Sobrevivência IV - Antoine de Saint-Exupéry

KS VI Antoine Saint Exupery.png

“Foi então que apareceu a raposa.

- Olá, bom dia!

- Disse a raposa.

- Olá, bom dia!

Respondeu delicadamente o principezinho que se voltou mas não viu ninguém.

- Estou aqui - disse a voz - debaixo da macieira.

- Quem és tu? - Perguntou o principezinho. - És bem bonita...

- Sou uma raposa - disse a raposa.

- Anda brincar comigo – pediu-lhe o principezinho. - Estou triste...

- Não posso ir brincar contigo – disse a raposa. - Não estou presa...

- Ah! Então, desculpa! - Disse o principezinho.

Mas pôs-se a pensar, a pensar, e acabou por perguntar:

- O que é que "estar preso" quer dizer?

(…)

- É a única coisa que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. - Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.

- Laços?

- Sim, laços – disse a raposa. - Ora vê: por enquanto, para mim, tu não és senão um rapazinho perfeitamente igual a outros cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem mil raposas. Mas, se tu me prenderes a ti, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, eu também passo a ser única no mundo... (…) Mas, se tu me prenderes a ti, a minha vida fica cheia de sol. Fico a conhecer uns passos diferentes de todos os outros passos. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus hão-de chamar-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Estás a ver, ali adiante, aqueles campos de trigo? Eu não como pão e, por isso, o trigo não me serve de nada. Os campos de trigo não me fazem lembrar de nada. E é uma triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Então, quando eu estiver presa a ti, vai ser maravilhoso! Como o trigo é dourado, há-de fazer-me lembrar de ti. E hei-de gostar do barulho do vento a bater no trigo...

A raposa calou-se e ficou a olhar durante muito tempo para o principezinho.

- Por favor...Prende-me a ti! - Acabou finalmente por dizer.”

 

Quando andava na escola, a palavra francesa “apprivoiser” era traduzida como “estar preso” e não como a atual e politicamente correta tradução “ser cativado”. Amar é, simbolicamente, “estar preso”, ser responsável por alguém. Quando uma Mãe tem um filho, fica presa, ligada, não é cativa nem o cativa, simplesmente estão vinculados.

Por isso gosto tanto desta tradução e deste episódio, em particular, d’O Principezinho.

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