Estado de calamidade ou "que desgraça!"
A minha Avó era uma pessoa peculiar, cheia de contradições e paradoxos. Para começar, era baixinha e magrinha, delicada mas cheia de energia, parecia quase flutuar. Na presença do meu Avô, parecia que ficava ainda mais pequena, já que ele era tão alto e ocupava tanto espaço com a sua voz grave e sonante.
Em 1918 nasceu a minha Avó, numa aldeia no Minho, onde habitariam, na altura, cerca de 900 pessoas. Foi Professora do Ensino Primário até o meu Pai nascer, pois com quatro filhos, tornava-se difícil cuidar de todos.
Quando o meu Avô morreu, teria eu uns onze anos, a minha Avó não fez grande alarido, vestiu-se de preto e branco, o que achei muito digno, e continuou a sua vida. Todos os dias ia a pé até ao mercado e aos Domingos, servindo sempre uma bela chávena de chá darjeeling, perguntava à minha Mãe pelas nossas notas, mas nunca pelas nossas brincadeiras ou interesses. Como disse, a minha Avó era um mundo de contradições.
O que melhor recordo da minha Avó eram as (frequentes) ocasiões em que alguém lhe contava algum evento, que a mim parecia completamente normal, e, inevitavelmente, a minha Avó soltava um suspiro e respondia “que desgraça!”. Independentemente do grau de gravidade ou seriedade do assunto, esta era a reação da minha Avó.
Agora que passaram tantos anos, imagino muitas vezes o medo que a minha Avó devia sentir. O medo da cidade, o medo de estar sozinha, o medo da diversão, da brincadeira, da desordem, o medo do desconhecido.
Entrámos, esta semana, novamente em “estado de calamidade” e, inevitavelmente, pensei “que desgraça!”. Não é “uma desgraça” como quando estávamos em “estado de emergência” e olhava pela janela e não via crianças a brincar, mas é “uma desgraça” porque também eu tenho medo de estar sozinha, que a diversão e a brincadeira não voltem e, sobretudo, tenho medo do desconhecido.