Kit de Sobrevivência XVII - Afonso Cruz
“Perder o lugar
A classe média envenenou-se num sofá de passividade sedentária. Receamos mais perder o nosso lugar no sofá, especialmente o que fica mesmo em frente à televisão, do que perder a liberdade ou a dignidade, que nos são subtraídas quotidianamente sob a aparência de novas leis económicas.” Afonso Cruz in “Jalan jalan: uma leitura do mundo”
Numas eleições profundamente marcadas pela pandemia, com uma taxa de abstenção de 60,51% lembrei-me deste texto de Afonso Cruz a propósito da apatia cívica que se vive no nosso país. Como disse Ricardo Araújo Pereira, não é falta de interesse na política, já que os programas onde se discute política como “Isto é gozar com quem trabalha”, “Governo Sombra”, “Circulatura do Quadrado” são dos programas com maior audiência, segundo o próprio conta.
Então porque não vão os portugueses às urnas? Quem são estes portugueses? Talvez alguns estejam descontentes com “o sistema”, o que é compreensível com sucessivos escândalos: crimes à vista de todos e onde a maioria sai impune, favores a amigos, cunhas entre familiares, fugas de informação em casos judiciais para os jornalistas. Onde está a Democracia? Aquela iniciada pelos gregos na qual os cidadãos livres atenienses, filhos de Mãe e Pai atenienses, maiores de 21 anos e que tivessem cumprido o serviço militar podiam participar na vida política? Será que evoluímos tão pouco em 2500 anos que a democracia continua a ser válida para uns e a excluir outros?
Naturalmente, o dado mais preocupante da noite foram os 490 mil cidadãos que votaram num candidato de extrema-direita populista. Mais do que lamentar ou criticar, é necessário focar a nossa atenção para estes cidadãos, perceber quem são, compreender as suas razões e agir sobre elas. Alguns dados preliminares recolhidos pelo Público mostram-nos que a distribuição da votação no dito candidato foi relativamente espalhada por todo o país, à exceção do Porto.
Sobre o Porto gostaria de fazer uma nota. Desde 1832, no Cerco do Porto, que a Cidade Invicta se apresenta como a grande defensora da Democracia em Portugal. A primeira tentativa de implantação de um regime republicano ocorreu no Porto a 31 de Janeiro de 1891 que daria lugar à efetiva implantação da república a 5 de Outubro de 1910, em Lisboa. Além disso, nunca podemos esquecer o Grupo dos Democratas Independentes Porto que lutou, durante as décadas de 50, 60 e 70 pela democracia portuguesa, organizando a candidatura do General Humberto Delgado em 1958.
Com isto não quero dizer que o partido seja ilegal como ouvi Ana Gomes e Marisa Matias reclamar nos debates presidenciais. Um partido legalizado pelo Tribunal Constitucional é legal e tem o direito a existir, a ser multado quando comete crimes seja de discriminação, incitação ao ódio e à violência, corrupção ou outros. E não cabe ao Presidente imiscuir-se nos assuntos do Tribunal Constitucional já que a Democracia prevê a priori independência entre poderes.
Assim, não olhemos com passividade para os resultados e não nos entreguemos a justificações fáceis. Procuremos a verdade, cuidemos dos nossos cidadãos, ouçamos as suas dificuldades e sejamos mais tolerantes. A favor da democracia, sempre.